Linhas de Cuidado

Diagnóstico Precoce

O acompanhamento do paciente deve ser realizado de forma compartilhada com a Atenção Primária à Saúde.

A confirmação do declínio cognitivo e avaliação diagnóstica do subtipo de demência, devem ser realizadas por meio de exame neurológico, testes cognitivos e a checagem de que as causas reversíveis de demência tenham sido excluídas.

Condições clínicas que devem ter acompanhamento na Atenção Especializada

  • Declínio cognitivo rapidamente progressivo: limitação funcional, cognitiva, comportamental ou motora significativas com evolução menor que dois anos
  • Dificuldade ou dúvida diagnóstica
  • Casos de difícil manejo comportamental

O cuidado e o grau de suporte que o paciente com demência vai precisar deve ser personalizado e dinâmico (reavaliado ao longo do tempo), levando em consideração as necessidades e preferências individuais, assim como as da família ou cuidadores.

Fases do fluxo de cuidado
Fases do fluxo

Fonte: Adaptado de The Dementia Care Pathway. Full implementation guidance. London: National Collaborating Centre for Mental Health; 2018.

Avaliação Clínica

Anamnese

A anamnese bem conduzida é o componente mais importante da avaliação do paciente com suspeita de demência. Por isso, entreviste o principal informante (alguém que conheça bem a pessoa) e pergunte sobre alterações recentes de pensamento, raciocínio, memória e orientação.

Questione o próprio indivíduo contando com a colaboração de um familiar quando possível sobre quando perceberam as primeiras alterações cognitivas. As seguintes questões podem guiar a abordagem:

  • Há quanto tempo você tem notado essas dificuldades?
  • As dificuldades pioraram nesse último ano?
  • As dificuldades estão impedindo a realização de alguma atividade?
  • As dificuldades te preocupam? Por quê?
  • Dê exemplos de situações em que essas dificuldades são percebidas

A palavra “dificuldades” é apropriada nessa situação pois pode incluir desde problemas de memória recente, dificuldades de planejamento/organização (função executiva) e autocuidado, problemas de linguagem, alterações de personalidade e manifestações neuropsiquiátricas como aquelas do humor, delírios e alucinações.

Pergunte qual foi a primeira alteração notada e qual a sequência das perdas cognitivas e motoras, incluindo alteração de marcha, continência urinária e deglutição.

O primeiro domínio cognitivo afetado na evolução da doença é muito importante no diagnóstico diferencial das demências: A perda de memória recente e dificuldade de orientação em locais previamente conhecidos podem indicar demência por Doença de Alzheimer, enquanto um quadro dominante de disfunção executiva com dificuldades de planejamento, organização e lentificação psicomotora, falam a favor de demência (micro)vascular, sobretudo se associados à apraxia de marcha.

Avalie a repercussão sobre as atividades de vida diária. É fundamental diferenciar se o comprometimento é decorrente do déficit cognitivo e não de comorbidades.

Caracterize a presença e o grau do déficit cognitivo e afaste causas que possam ser confundidas com demência.

Fluxograma de avaliação diagnóstica
Avalie se há sinais de demência: Rastreamento cognitivo e avaliação funcional
.

Há outras explicações para os sintomas?

.
Verifique se há outros problemas clínicos
.
Avalie se há outros sintomas comportamentais ou psicológicos

Avaliação Clínica

Sinais e sintomas

Principais domínios cognitivo-comportamentais passíveis de serem acometidos pelas Pessoas com Demência:

Memória

Consciente (explícita ou declarativa): A memória é acessível ao consciente. Divide-se em episódica (ou factual) e semântica, referente ao conhecimento geral e linguístico acumulado. A memória episódica, por sua vez, divide-se em memória de trabalho (< 3 minutos), de curto prazo (3 minutos a dias), de longo prazo (semanas a meses) e duradoura (anos a décadas). Na fase inicial da demência por Doença de Alzheimer, há um comprometimento predominante da memória episódica de curto prazo. Nas demências subcorticais (exemplo: microvascular) e na depressão costuma haver um comprometimento predominantemente da memória de trabalho e das funções executivas

Inconsciente (implícita ou não declarativa): O indivíduo não tem consciência do seu conhecimento, como é o caso do aprendizado motor e do condicionamento

Função executiva 

Envolve o raciocínio, flexibilidade de tarefas e resolução de problemas, planejamento, organização e execução de tarefas. 

Subgrupos do sintoma dominante: 

  • Desinibição: Demência frontotemporal comportamental
  • Lentificação da velocidade de processamento cognitivo e motor: Demências subcorticais, incluindo a demência microvascular, de Lewy e parkinsoniana 

Alterações de planejamento costumam estar presentes em ambos os subtipos

Atenção

Função cognitiva que modula o funcionamento de todas as outras. Com o envelhecimento usual pode haver diminuição da reserva funcional cerebral, tornando os diversos domínios cognitivos altamente dependentes da atenção para funcionarem

Alterações de atenção:

  • Atenção concentrada: capacidade de selecionar apenas uma fonte de informação
  • Atenção dividida: capacidade de procurar dois ou mais estímulos simultaneamente
  • Atenção alternada: capacidade de alternar entre estímulos sucessivamente 

Práxis

Capacidade de planejar a execução de atividades motoras previamente aprendidas

Apraxia é a dificuldade para executar as atividades motoras, apesar da integridade da compreensão e do sistema motor. 

  • Apraxia de marcha: O paciente apresenta significativa alteração de marcha, apesar da força ser simétrica e não haver sinais cerebelares. O paciente pode apresentar significativa dificuldade em iniciar a marcha (falência na ignição da marcha), encurtamento dos passos (marcha de passos curtos) e alargamento da base

Atenção: A presença de apraxia de marcha é um dos sinais neurológicos que mais ajudam a diferenciar a demência por Doença de Alzheimer das outras demências, pois, se presente, sugere a uma demência do tipo não Alzheimer

Linguagem

Capacidade de comunicação, verbal ou não. 

Afasia: Dificuldade no processamento cognitivo (elaboração e/ou compreensão e/ou repetição) da linguagem verbal e escrita 

Afasia de início súbito: sugere acidente vascular cerebral (AVC)

Alterações lentas e progressivas da linguagem associadas a outras alterações neurocognitivas sugerem processo demencial em curso

Função visuoespacial

Em cerca de 10% dos casos de demência por Doença de Alzheimer, o principal sintoma referido pela família é perder-se e não saber voltar para casa (memória espacial). 

Simultanagnosia: Incapacidade em perceber  diversos objetos do campo visual, ou seja, o indivíduo percebe um objeto por vez, apesar da integridade das vias ópticas

Comportamento

Sonolência, apatia (inércia e perda de motivação em realizar as atividades)

Agitação e agressividade: Verbal ou física 

Delírios, alucinações, desinibição/inadequação social, hipersexualidade e outros comportamentos compulsivos 

Pacientes com demência podem apresentar quaisquer sintomas comportamentais ao longo do curso da doença, sendo apatia o sintoma mais frequente

Fonte: Adaptado de Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. Porto Alegre: Artmed, 2022.

Avaliação Clínica

Avaliação funcional

A avaliação funcional deve definir os prejuízos nas Atividades Instrumentais de Vida Diária (AIVD) e nas Atividades Básicas de Vida Diária (ABVD), de acordo com o grau de dependência do paciente.

Independência: capacidade de realizar atividades sem precisar da ajuda dos outros.

Incapacidade funcional: limitação/dificuldade para execução de papéis sociais e de atividades cotidianas, laborais, de entretenimento e familiares de forma independente.

Questionário de Pfeffer

Escala de 11 questões, aplicada ao acompanhante ou cuidador, sobre a capacidade do paciente em desempenhar determinadas funções. Verifica a presença e a gravidade do declínio cognitivo.

A pontuação de seis ou mais sugere maior dependência. A pontuação máxima é igual a 33 pontos. Quanto mais elevado o escore, maior a dependência de assistência.

Para avaliar o paciente, mostre a ele as opções do questionário e leia as perguntas. Anote a pontuação:

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Perguntas

O paciente é capaz de:

Sim, é capaz

Nunca o fez, mas poderia fazer agora

Com alguma dificuldade, mas faz

Nunca fez e teria dificuldade agora

Necessita de ajuda

Não é capaz

0 pontos

0 pontos

1 ponto

1 pontos

2 pontos

3 pontos

1. Cuidar do seu próprio dinheiro? 

           

2. Fazer as compras sozinho (por exemplo de comida e roupa)?

           

3. Esquentar água para café ou chá e apagar o fogo?

           

4. Preparar comida? 

           

5. Manter-se em dia com os acontecimentos da comunidade e o que se passa na vizinhança?

           

6. Prestar atenção, entender e discutir um programa de rádio, televisão ou um artigo do jornal?

           

7. Lembrar de compromissos e acontecimentos familiares?

           

8. Cuidar de seus próprios medicamentos?

           

9. Andar pela vizinhança e encontrar o caminho de volta para casa?

           

10. Cumprimentar seus amigos adequadamente?

           

11. Ficar sozinho (a) em casa de forma segura?

           

Fonte: Adaptado de Avaliação funcional do idoso. São Paulo: IPGG-JEM, 2015.

Escala de Katz

Avalia as atividades de vida diária hierarquicamente relacionadas, mensurando a capacidade funcional no desempenho de seis funções: tomar banho, vestir- se, ir ao banheiro, transferir-se, ter continência e alimentar-se.

O declínio funcional inicia-se por tarefas mais complexas, como tomar banho, e progride até chegar ao nível de dependência completa, quando o paciente necessita de ajuda até para se alimentar.

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Atividade

Independente

Sim

Não

1. Banho

Não recebe assistência ou somente recebe em uma parte do corpo

(   )

(   )

2. Vestir-se

Escolhe as roupas e se veste sem nenhuma ajuda, exceto para calçar sapatos

(   )

(   )

3. Higiene pessoal

Vai ao banheiro, usa-o, veste-se e retorna sem nenhuma assistência (pode usar bengala ou andador como apoio e usar comadre/urinol à noite)

(   )

(   )

4. Transferência

Consegue deitar e levantar de uma cama ou sentar e levantar de uma cadeira sem ajuda (pode usar bengala ou andador)

(   )

(   )

5. Continência 

Tem autocontrole do intestino e da bexiga (sem “acidentes ocasionais”)

(   )

(   )

6. Alimentação

Alimenta-se sem ajuda, exceto para cortar carne ou passar manteiga no pão

(   )

(   )

Fonte: Avaliação funcional do idoso. São Paulo: IPGG-JEM, 2015.

Interpretação da escala:

  1. Independente em todas as seis funções
  2. Independente em cinco funções e dependente em uma função
  3. Independente em quatro funções e dependente em duas funções
  4. Independente em três funções e dependente em três funções
  5. Independente em duas funções e dependente em quatro funções
  6. Independente em uma função e dependente em cinco funções
  7. Dependente em todas as seis funções

Exame neurológico dirigido

Para avaliação breve da cognição, consulte testes de rastreamento.

Além da avaliação cognitiva, o exame neurológico sumário, dirigido para alguns sinais, é muito útil no diagnóstico diferencial das demências. Avalie alterações de fala, movimentação ocular, força, coordenação motora, sinais de parkinsonismo (rigidez de membros ou axial, lentidão dos movimentos, tremor de repouso), marcha, equilíbrio.

Diagnóstico

Diagnóstico diferencial de delirium

Na avaliação do paciente com disfunção cognitiva deve-se afastar delirium (síndrome mental aguda), sendo definido como uma síndrome cerebral orgânica de natureza aguda, curso flutuante e causa potencialmente reversível.

O principal domínio cognitivo afetado é a atenção:

  • Delirium hipoativo: o paciente encontra-se sonolento 
  • Delirium hiperativo: o paciente encontra-se agitado

Na maior parte dos casos, o delirium é completamente reversível. Entretanto, pacientes idosos podem sair do delirium em uma fase um pouco mais avançada de declínio cognitivo.

As principais causas são:

Pode se instalar em uma pessoa com história prévia de demência. Identificada e tratada a causa do delirium, o indivíduo frequentemente retorna ao estado prévio. Pacientes com baixa reserva funcional são bastante vulneráveis e podem entrar em delirium às mínimas alterações do meio interno.

Diagnóstico

Diagnóstico diferencial de declínio cognitivo associado à depressão

Idosos podem apresentar depressão com início na vida adulta e episódios recorrentes, ou quadro de início tardio. No primeiro grupo, fatores genéticos são mais predominantes do que no segundo, no qual doenças clínicas e fatores psicossociais são relevantes.

A depressão de início tardio é aquela que se apresenta pela primeira vez na vida de uma pessoa idosa, não havendo história de episódio depressivo na idade adulta. Depressão e demência podem muitas vezes se sobrepor. A depressão pode ser a apresentação inicial da demência, assim como pode ser uma manifestação neuropsiquiátrica já em casos diagnosticados com demência.

Costuma estar associada à:

  • Causas psicossociais: Reação a perdas de pessoas queridas, privação econômica ou isolamento social
  • Dor crônica incapacitante
  • Limitação funcional de qualquer causa não cerebral. Exemplo: fratura de colo do fêmur, enfisema, insuficiência cardíaca congestiva
  • Doença cerebral: Processos demenciais neurodegenerativos e cerebrovasculares, doença de Parkinson

Essas causas estão associadas também às tentativas de suicídio ou suicídio consumado em pessoas idosas.

A Escala de Depressão Geriátrica (GDS) (versão de 15 itens) deve ser aplicada na suspeita de depressão. Escores iguais ou superiores a 5 sugerem um possível diagnóstico de depressão.

Presença de sinais de liberação frontal (preensão palmar, palmo-mentoniano, glabelar inesgotável/Mayerson positivo), de apraxia de marcha ou de sinais de liberação piramidal (hemiparesia, Babinski positivo, paresia facial de padrão central/supranuclear), afastam a possibilidade de depressão isolada e sugerem presença de quadros demenciais.

Diagnóstico diferencial entre demência e Depressão
Fatores Demência Depressão

Acompanhante

Quase sempre

O paciente pode ter vindo sozinho

Acompanhante corrobora queixa cognitiva

Em geral acima do nível admitido pelo paciente

Em geral abaixo do nível admitido pelo paciente

Idade

Pacientes tendem a ser mais velhos

Pacientes tendem a ser de meia-idade

Gênero

Leve tendência feminina

Forte tendência feminina

Queixa de memória

Tenta esconder ou minimizar

Tende a aumentar as queixas

Humor

Flutuante

Constantemente depressivo

Início das queixas cognitivas

Em geral insidioso e progressivo

História de evento reativo (perdas)

Duração do início dos sintomas até a consulta

Em geral > 1 ano

Em geral < 6 meses

Memória altamente dependente da atenção

Não

Sim

“Memória seletiva”

Não

Sim

Respostas às perguntas

Tenta responder

Responde frequentemente “não sei”

Memorização da lista de palavras

Não melhora significativamente com a reexposição

Melhora com a reexposição se o indivíduo tentar

História de AVC, apraxia de marcha, sinal focal ou ainda hipertensão moderada a grave, diabetes ou tabagismo

Sim para demência (micro)vascular

Não, mas depressão pode estar associada à demência vascular

Déficits em outros domínios cognitivos (apraxia, agnosia, afasia)

Sim

Não

História pessoal de depressão ou de transtorno de humor grave em pais ou irmãos

Não

Sim

História de demência avançada em pais ou irmãos mais velhos

Sim

Não

“Vontade de morrer” (ideação suicida)

Não

Pode haver

Fonte: Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. Porto Alegre: Artmed, 2022.

Atenção: Na dúvida do diagnóstico de depressão, iniciar tratamento antidepressivo e reavaliar o paciente em 30 dias. Havendo melhora significativa do humor, mas não da cognição, inicia-se o diagnóstico diferencial etiológico para demência.

Para informações sobre o manejo da depressão, consulte a Linha de Cuidado da Depressão no adulto.

Diagnóstico

Diagnóstico etiológico das demências

O profissional de saúde que acolhe e avalia o paciente deve investigar as causas de demência, que podem ser secundárias a causas sistêmicas ou associadas a doenças neurológicas.

Atenção: As demências potencialmente reversíveis devem ser sempre investigadas, pois se tratadas precocemente, podem reverter o quadro demencial.

Tipos de demência:

A Doença de Alzheimer é o tipo mais comum de demência. É uma doença neurodegenerativa, caracterizada por um início insidioso dos sintomas com piora lenta e progressiva. O diagnóstico é baseado na observação de quadro clínico compatível e na exclusão de outras causas de demência através de exames laboratoriais e de neuroimagem estrutural.

Apresentação clínica

O comprometimento da memória de curto prazo, é a manifestação clássica da doença. O paciente é capaz de participar de uma conversação superficial, mas muito do que foi discutido é perdido em 2 a 3 minutos. Outros exemplos: esquece eventos recentes, faz a mesma pergunta várias vezes em um curto intervalo de tempo, aloca itens em lugares inapropriados de forma repetida, dificuldade em lembrar datas e compromissos.

Ainda na fase inicial, o  paciente pode perder-se em locais previamente conhecidos, ter dificuldade de dirigir e utilizar mapas.

No domínio da linguagem, há uma redução da fala espontânea, hesitação na fala, com proeminentes dificuldades em encontrar as palavras. Com a progressão da doença, o paciente pode evoluir para uma afasia global e mutismo.

Do domínio das funções executivas, os sintomas cognitivos podem manifestar-se com dificuldade de reconhecer objetos, problemas com planejamento, organização, abstração, inabilidade de reconhecer ou executar gestos motores.

O envolvimento da área pré-motora costuma ser mais tardio, razão pela qual apraxias, inclusive da marcha, costumam aparecer apenas na fase avançada da doença. O paciente com Alzheimer “puro” (sem componente vascular) deixa de deambular em fases muito avançadas da doença. A presença precoce de apraxia de marcha praticamente exclui a possibilidade de doença de Alzheimer.

Delírios e alucinações podem ocorrer em qualquer estágio do Alzheimer, mas classicamente se iniciam na fase moderada da doença. Entretanto, na presença de alucinações precoces, deve-se suspeitar de outra demência, como Lewy ou vascular.

Exames de imagem

A tomografia computadorizada e/ou ressonância magnética cerebral podem apresentar atrofia da formação hipocampal e do córtex cerebral, de distribuição difusa ou de predomínio em regiões posteriores.

A hipertensão, o diabetes e o tabagismo são os principais fatores de risco para demência vascular.

O quadro está associado aos efeitos de lesões cerebrais tromboembólicas (demência por múltiplos infartos), estados lacunares e lesões únicas em locais específicos (tálamo, giro angular esquerdo núcleo caudado), demência associada a lesões extensas da substância branca (doença de Binswanger), angiopatia amilóide e demência por acidentes vasculares cerebrais hemorrágicos.

O elemento diagnóstico principal é o estabelecimento de relação causal entre o comprometimento cerebrovascular e o quadro demencial, o que, no entanto, muitas vezes não é claro.

Apresentação clínica

Caracteriza-se por um quadro dominante de disfunção executiva, com dificuldades de planejamento e lentificação psicomotora, associado a preservação da memória recente e à apraxia de marcha. Em geral, a incontinência urinária do tipo urgência (deve-se afastar hiperplasia prostática benigna no homem e incontinência de estresse na mulher) e a apraxia de marcha são as primeiras manifestações.

A grande maioria dos pacientes que se apresentam com disfunção cognitiva precoce e apraxia de marcha têm demência vascular. A apraxia de marcha inclui a marcha de passos curtos e a falência em iniciar a marcha (festinação).

O déficit de memória é desproporcionalmente pequeno quando comparado à doença de Alzheimer e aos outros domínios afetados. Os sinais e sintomas são diretamente associados a localização das lesões - podendo mimetizar diferentes quadros

Para o diagnóstico de demência vascular, o paciente deve apresentar os critérios diagnósticos gerais de demência e ao menos um dos seguintes achados:

  • Sinal de lesão cortical focal: Como hemiparesia e Babinski, ou de outro domínio como linguagem (exemplo: afasia de expressão) ou visuoespacial (exemplo: heminegligência). Os sinais devem ter aparecido após um episódio agudo
  • História de acidente vascular cerebral (AVC) confirmada por neurologista
  • Apraxia de marcha do tipo pequenos passos, de início insidioso por muitos meses ou anos, na ausência de outra causa que melhor explique o parkinsonismo de membros inferiores (exemplo: uso de neurolépticos, doença de Parkinson, demência de Lewy).
  • Exame de imagem (tomografia ou ressonância nuclear magnética) confirmando uma área de isquemia causada por AVC e/ou evidenciando significativa (confluente) leucoaraiose periventricular
Características clínicas que diferenciam a doença de Alzheimer da demência vascular
Achado Clínico Alzheimer Vascular

Início

Insidioso

Insidioso ou súbito

História compatível com AVC

Não há

1/3 dos casos

Déficit neurológico focal

Não há

Frequente

Sinal de Babinski

Ausente

Frequente

Principal alteração cognitiva

Memória

Função executiva (depende da localização)

Alteração de marcha

Ausente

Quase sempre

Rigidez

Ausente

Frequente*

Depressão

Comum

Muito comum**

Urge-incontinência

Pode haver

Muito comum

Hipertensão e/ou diabetes

Pode haver

Quase sempre

* Classicamente do tipo paratonia, caracterizada pela resistência semi-involuntária contínua (sem roda denteada), no sentido contrário à movimentação pelo examinador.
** Apesar de não específico, o caráter apático nas fases iniciais da doença é mais sugestivo de demência vascular do que de Alzheimer. Conforme a doença evolui e o paciente se torna acamado, a apatia domina o quadro também na doença de Alzheimer.
Fonte: Adaptado de Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. Porto Alegre: Artmed, 2022.

Com os avanços em neuropatologia, houve uma tendência em classificar a Demência com Corpos de Lewy, a Demência por Doença de Parkinson e a Atrofia de Múltiplos Sistema como parte do espectro das “demências de Corpos de Lewy”, por compartilharem características patológicas semelhantes. A Demência com Corpos de Lewy (DCL) é uma das causas mais comuns de demência após a Doença de Alzheimer e a demência vascular. Muitas vezes, apresenta um desafio diagnóstico pela heterogeneidade clínica e sobreposição com outras doenças neurodegenerativas.

O achado principal que distingue a DCL da Demência por Doença de Parkinson é o tempo de início dos sintomas cognitivos em relação aos sintomas parkinsonianos. Por regra, a demência precede ou ocorre simultânea aos sintomas parkinsonianos na DCL. Por outro lado, se os sintomas parkinsonianos precedem em pelo menos um ano a demência, o diagnóstico é de Demência por Doença de Parkinson.

 

Demência com Corpos de Lewy

Doença de Parkinson

Características

Inicio geralmente após os 65 anos de idade.

Presença de demência associada às principais características:

Flutuação cognitiva: com pronunciada variação da atenção e alerta

Alucinações visuais recorrentes: geralmente bem formadas e detalhadas

Parkinsonismo: bradicinesia, rigidez, tremor de repouso 

O parkinsonismo tende a ser menos assimétrico e com menos tremor

Distúrbio Comportamental do Sono REM: sono agitado, como se estivesse vivendo um sonho

Caracterizada por parkinsonismo assimétrico: rigidez, bradicinesia e tremor predominam em um lado do corpo

Pode apresentar instabilidade postural e quedas

Demência por Doença de Parkinson: Inicia com o quadro motor e, após pelo menos um ano, evoluem para demência (normalmente a demência é uma manifestação tardia da Doença de Parkinson)

 

Costumam manifestar mais sintomas neuropsiquiátricos como ansiedade, agitação, delírios e alucinações

É composta de um espectro clínico, genético e patológico  de doenças neurodegenerativas, caracterizadas por alterações comportamentais, disfunção executiva e prejuízo de linguagem.

É uma importante causa de demência de início precoce. Costuma se iniciar antes dos 65 anos de idade, com 60% dos casos iniciando entre 45 a 64 anos.

Clinicamente, a demência frontotemporal é dividida em três subtipos, baseados nos sintomas iniciais predominantes, a variante comportamental da demência frontotemporal, afasia primária progressiva variante não fluente e afasia primária progressiva variante semântica (demência semântica).

Esses pacientes devem ser encaminhados para manejo de especialistas que podem ser da neurologia, geriatria ou psiquiatria, se disponível.

Variante comportamental da demência frontotemporal

O paciente apresenta inadequação social, com comportamento excessivamente desinibido e inapropriado, com declínio precoce da conduta social interpessoal e perda da capacidade de “tato social”, havendo dificuldade em inibir um ato iniciado pela vontade.

A capacidade de planejamento executivo diminui de modo significativo, levando a uma certa distratibilidade e falta de persistência em obedecer a comandos menos simples. Hipersexualidade é uma característica frequentemente marcante.

Há uma relativa preservação inicial da memória, sendo um dos poucos subtipos demenciais no qual pode haver hiperoralidade, com aumento do apetite e do peso na fase inicial.

O paciente costuma apresentar discurso estereotipado. Na fase moderada a avançada da doença, pode haver ecolalia, afasia de expressão e compreensão e, por fim, mutismo.

Ao exame neurológico, costumam estar presentes sinais de liberação frontal (mais precocemente do que ocorre nos outros tipos demenciais): Preensão palmar, palmo-mentoniano, glabelar inesgotável e mento-orbicular.

Variantes de linguagem

Afasia primária progressiva: Disfunção progressiva na produção da linguagem, com perda da capacidade de elaboração sintáxica (frases), anomias e parafasias, tornando a linguagem forçosa e difícil, com dificuldade em encontrar as palavras que representam os símbolos e conceitos mentais.

Critérios diagnósticos Afasia primária progressiva:

Todos presentes:

  1. Dificuldade de linguagem é o sintoma predominante;
  2. Dificuldade de linguagem é o sintoma que mais provoca incapacidade;
  3. Dificuldade de linguagem é o primeiro sintoma percebido e predomina ao longo da fase inicial.

Todos ausentes:

  1. Sintomas são decorrentes de outra condição neurológica que não degenerativa ou outra condição médica geral;
  2. Sintomas são melhor explicados por transtorno psiquiátrico;
  3. Manifestação inicial predominante é déficit de memória episódica ou memória/percepção visual;
  4. Manifestação inicial predominante é alteração de comportamento.

Afasia primária progressiva variante semântica (demência semântica)

É visível a atrofia do lobo temporal anterior direito ou esquerdo, de forma assimétrica inicialmente. O discurso em conversações sobre tópicos familiares pode parecer normal em estágios iniciais. Com a progressão da doença, palavras mais complexas e de menor frequência de uso passam a ser substituídas por “coisa”, “lugar”. Mesmo em estágios iniciais, os problemas com vocabulários podem se tornar evidentes com perguntas simples, “Como está sua compreessão?”. A resposta típica para essa pergunta pode ser “O que é compreensão, o que é isso”? A anomia em testes de nomeação está sempre presente. Inicialmente os pacientes podem ter sucesso em nomear exemplos simples e comuns, como “cachorro”, “gato”. Para exemplos mais incomuns como “zebra”, podem ser nomeados com exemplos mais simples como “cavalo”. Com o avançar, pode ser respondido “eu não sei”. Existe também dificuldade de compreensão das palavras e dislexia de superfície, embora a repetição e a gramática usualmente estejam preservadas. Somado aos problemas cognitivos, pode haver alteração na personalidade e no comportamento, obsessão por determinadas atividades.

Afasia primária progressiva variante não fluente

Atrofia predominantemente na região fronto insular esquerda. Inicialmente é evidente a diminuição no discurso das palavras, diminuição do tamanho das frases e problemas em articular a fala. Problemas na compreensão e gramática são comuns. Usualmente os pacientes são capazes de preservar o convívio social ao longo da doença. É comum a associação desta variante de linguagem com outras doenças neurológicas degenerativas, como a Paralisia Supranuclear Progressiva e a Degeneração Corticobasal.

Fluxo de avaliação

Paciente com suspeita de demência
.
Avaliação clínica
.
Sim
.
Não

.
.
Manejo
Declínio cognitivo que afeta
múltiplos domínios?
Sim
.
Não

.
.
Comprometimento de pelo menos 2 domínios cognitivos?
Não

Sem demência
Sim .
.
Declínio funcional?
Reavaliação de seguimento
Sim
.
Não

.
.
Demência
Sim .
Solicitar exames complementares:
laboratório + imagem
.
.
Sim
.
Não

.
.
Manejo
Aconselhamento e tratamento
Fluxo do diagnóstico diferencial de demência do tipo não Alzheimer e não vascular
Fluxograma do diagnostico

* O paciente deve seguir o acompanhamento compartilhado na APS.
Fonte: Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. Porto Alegre: Artmed, 2022.

Demências potencialmente reversíveis

Causas potencialmente reversíveis de demência:

  • Uso de medicamentos (psicotrópicos e analgésicos narcóticos)
  • Metabólica (distúrbio hidroeletrolítico, desidratação, insuficiência renal ou hepática e hipoxemia)
  • Neurológica (hidrocefalia de pressão normal, tumor e hematoma subdural crônico)
  • Infecciosas (Meningite crônica, AIDS, neurossífilis)
  • Colágeno-Vascular (lúpus eritematoso sistêmico, arterite temporal, vasculite reumatóide, sarcoidose e púrpura trombocitopênica trombótica)
  • Endócrinas (doença tireoidiana, doença paratireoidiana, doença da adrenal e doença da pituitária)
  • Nutricionais (deficiência de vitamina B12, ácido fólico, tiamina e niacina)
  • Alcoolismo crônico

Atenção: Pensar em neuroinfecção (exemplo: neurotoxoplasmose) ou linfoma do sistema nervoso central (SNC) em pacientes infectados pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) evoluindo com sinal focal e rápida deterioração cognitiva.

Pode causar anemia, neuropatia periférica e demência em quadros graves.

Pacientes com valores séricos de vitamina B12 abaixo de 300 devem ser sempre tratados.

Repor vitamina B12 5.000 UI por dia por cinco dias, mesma dose semanal por cinco semanas e mesma dose mensal ad eternum. Considerar via intramuscular caso suspeite de problemas de absorção.

Pode causar demência em quadros graves, apesar de raras vezes ser causa de demência isolada.

Costuma cursar com declínio cognitivo de evolução progressiva.

Solicitar FTA-ABS (idealmente incluindo IgM) para pacientes com VDRL positivo. Confirmada a positividade do FTA-ABS, encaminhar o paciente para realizar punção lombar com análise do VDRL no líquor (sensível e específico para neurolues, diferentemente do VDRL no sangue).

Na suspeita de meningoencefalite, quando há demência de rápida evolução, a punção lombar deve ser realizada em caráter emergencial.

Demência por deficiência de tiamina, com frequência associada ao alcoolismo.

Encaminhar para internação hospitalar se ainda consumirem álcool, sendo a necessidade de desintoxicação premente.

Exames Complementares

Deve ser realizado em todo paciente com demência, sem contraste, a não ser que haja suspeita de neoplasia do sistema nervoso central.

Objetivo: Afastar e quantificar patologia (micro)vascular, além de detectar infecções e tumores do sistema nervoso central e avaliar padrão de atrofia encefálica.

Para paciente com necessidade de tratamento medicamentoso, idealmente deve ser solicitado um ECG de base, pois algumas medicações podem prolongar o intervalo QT.

Solicitar exames laboratoriais com o objetivo de investigar possíveis causas potencialmente reversíveis de declínio cognitivo:

  • Vitamina B12
  • Sorologia para HIV e sífilis (VDRL e FTA-ABS)
  • Hemograma e plaquetas (anemia, sangramento por plaquetopenia)
  • Bioquímica: Sódio, potássio, glicose, ureia, creatinina, perfil glicêmico, perfil lipídico, avaliação hepática, cálcio

A deficiência de ácido fólico tem sido infrequente no Brasil após a lei que determinou a adição dessa vitamina às farinhas de trigo e de milho. A dosagem deve ser solicitada quando houver desnutrição, etilismo ou mal absorção.

O hipotireoidismo no idoso, mesmo sendo subclínico, está associado a maior risco de depressão e comprometimento cognitivo, devendo sempre ser avaliado e tratado.

A presbiacusia (alteração na acuidade auditiva) acompanha o processo de envelhecimento. É caracterizada por uma perda auditiva neurossensorial, bilateral, simétrica e com importante comprometimento das altas frequências, levando a população idosa a apresentar dificuldades importantes na comunicação, principalmente na compreensão de palavras faladas.

A audição pode ser avaliada por meio do uso de algumas questões simples (é permitido o uso de aparelhos auditivos). Todas as respostas devem ser confirmadas por alguém que conviva com o idoso

  • Você tem problemas de audição capazes de impedir a realização de alguma atividade do cotidiano?
  • Compreende a fala em situações sociais?
  • Consegue entender o que ouve no rádio ou televisão?
  • Tem necessidade que as pessoas repitam o que lhe é falado?
  • Sente zumbido ou algum tipo de barulho no ouvido ou cabeça?
  • Fala alto demais?
  • Evita conversar?
  • Prefere ficar só?

Teste do sussurro: instrumento para triagem auditiva em indivíduos idosos com suspeita de presbiacusia.

O examinador deve ficar fora do campo visual do paciente, a uma distância de 33 cm de cada orelha, e sussurrar, em cada lado, uma questão breve e simples, como, por exemplo, “qual é o seu nome”.

Caso o idoso não responda, realizar a inspeção do conduto auditivo externo para afastar a possibilidade de obstrução, o que poderia ser a causa da redução da acuidade auditiva.

Na ausência de obstrução, o paciente deverá ser encaminhado para realização da audiometria em unidades especializadas.

Sugere-se a aplicação da Escala CDR (Clinical Dementia Rating scale) para determinar gravidade de doença e planejamento de suporte terapêutico.